Rosto

Se os meus olhos pudessem tocar o teu rosto, decerto que a alma que possuo não estaria buscando o corpo, que, parecendo paradoxo, é onde essa mesma alma reside. Ao som da música que nem sequer vozes possui, vagueio sem destino pelos desencontros constantes entre as duas entidades antes explícitas pelas palavras mais apropriadas: digo isto porque pode parecer que complico o que digo, apesar de não partilhar dessa opinião.
Vejo um rosto jovem; aliás dois: um reside na propriedade, difícil de encontrar, do som, ausente de vozes, que me enche a mente aos poucos; mente esta, que é onde se encontra o outro rosto. O rosto duma pessoa que, apesar de ainda inexistente em corpo, cria uma atmosfera que paira sobre mim, não só neste momento como noutros, nos quais vocês não são convidados, e este será talvez um dos mais arrojados exemplos do egoísmo humano que, pelos vistos, até a mim me assola.
Focando-me na face que ainda reside apenas na minha mente, devo dizer-vos que nunca se viu uma face assim. Pertence a um ser do sexo feminino, exuberante a cada gesto, puro no seu todo e estranhamente claro, nem parece filha de seu pai. Peço-vos apenas que não desacreditem de tudo isto ao julgarem pela descrição desajeitada de quem nada percebe de aparências, mas que em contrapartida retira ilações da energia levemente transparecida por pequenos traços que da sua existência só alguém muito próximo se aperceberia.
Este rosto, repetido vezes sem conta, tanto neste texto como na minha mente, espera impaciente para que lhe dêem vida, seja em corpo ou noutra forma qualquer. Tenho esperança que ela, naqueles momentos em que somos um só, veja o mesmo rosto que eu vejo todos os dias, e que o pinte, numa das suas telas que ainda estão em branco. Ela... é a pintora que eu sempre amei; ela... é a mãe da minha filha.

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