Rosto

Se os meus olhos pudessem tocar o teu rosto, decerto que a alma que possuo não estaria buscando o corpo, que, parecendo paradoxo, é onde essa mesma alma reside. Ao som da música que nem sequer vozes possui, vagueio sem destino pelos desencontros constantes entre as duas entidades antes explícitas pelas palavras mais apropriadas: digo isto porque pode parecer que complico o que digo, apesar de não partilhar dessa opinião.
Vejo um rosto jovem; aliás dois: um reside na propriedade, difícil de encontrar, do som, ausente de vozes, que me enche a mente aos poucos; mente esta, que é onde se encontra o outro rosto. O rosto duma pessoa que, apesar de ainda inexistente em corpo, cria uma atmosfera que paira sobre mim, não só neste momento como noutros, nos quais vocês não são convidados, e este será talvez um dos mais arrojados exemplos do egoísmo humano que, pelos vistos, até a mim me assola.
Focando-me na face que ainda reside apenas na minha mente, devo dizer-vos que nunca se viu uma face assim. Pertence a um ser do sexo feminino, exuberante a cada gesto, puro no seu todo e estranhamente claro, nem parece filha de seu pai. Peço-vos apenas que não desacreditem de tudo isto ao julgarem pela descrição desajeitada de quem nada percebe de aparências, mas que em contrapartida retira ilações da energia levemente transparecida por pequenos traços que da sua existência só alguém muito próximo se aperceberia.
Este rosto, repetido vezes sem conta, tanto neste texto como na minha mente, espera impaciente para que lhe dêem vida, seja em corpo ou noutra forma qualquer. Tenho esperança que ela, naqueles momentos em que somos um só, veja o mesmo rosto que eu vejo todos os dias, e que o pinte, numa das suas telas que ainda estão em branco. Ela... é a pintora que eu sempre amei; ela... é a mãe da minha filha.

1.

Esta é uma estória daquelas que se contam antes de dormir. Antes de se principiar, devo salientar que de facto foi numa vez, o que não significa que sejam pronunciadas palavras que remetam para isso, pelo menos não as usuais. O protagonista era um menino muito pequenino, tão pequenino que me obrigou a aplicar um diminutivo, veja-se só. É pequenino, nem percebe o que se encontra à sua volta, como se vê agora, que nem dá por mim a contar isto, e se verá mais à frente na estória, que será de certeza contado.
Estava sentado na sala da sua pequena casa, que nunca chegará a ser realmente sua, a ver as imagens que se moviam dentro da caixa que a partir de meados de 1924 alguém decidiu chamar televisão. Neste sistema electrónico passava um daqueles programas para crianças, que pouco importa o nome, mas que é admirado por um número significativo de seres humanos durante um certo intervalo etário chamado de infância. Que o miúdo soubesse, apenas sua mãe estava em casa. Facto que rápido percebeu não ser verdade, quando viu o seu pai entrar pela porta da divisão onde estava. O pai não reparou no miúdo, mas o miúdo, feliz que nem... um miúdo vá, pediu-lhe que prestasse atenção à cena seguinte da história fantasiosa que atentamente observava. Pobre miúdo, nem que miúdo não fosse, nunca adivinharia o que de seguida iria acontecer. Talvez só Deus soubesse, porque ele sabe tudo, mas nada poderia fazer para aquilo evitar, porque o livre-arbítrio existe, sendo assim, Deus é omnisciente mas nunca poderá ser omnipotente, mas isto são outras estórias de quem é inexplicavelmente ouvido.
Voltando à estória, que ainda não acabou, por pouco mais de 5 segundos, o miúdo perdeu a atenção que prestava à história animada para se poder concentrar nos dois vultos que passaram o corredor em direcção ao quarto. Mesmo antes que o miúdo voltasse a prestar atenção ao aparelho de entretenimento situado na sala onde se encontrava, gritos cortaram o ambiente feliz criado pela mente da criança em seu redor. Apesar de pequenino, o miúdo conseguia andar e foi o que fez. Percorreu um caminho curto que para ele era longo, o que não impediu que fosse feito num curto intervalo de tempo. Quando chegou à porta do quarto, presenciou a imagem que mais tarde iria voltar a penetrar-lhe a cabeça em forma de memória. Seu pai estava em cima de sua mãe, não a satisfazerem-se mutuamente como poderia sugerir a muita gente, mas sim numa batalha pela sobrevivência. Quem tenha olhos que vejam, perceberia que o progenitor do sexo masculino estava com uma vantagem enorme, de faca na mão, a colaborar activamente para que a quantidade de sangue jorrado pela outra parte do casal não parasse de aumentar. No meio de toda esta imensidão de horrores, de súbito, ouviu-se numa voz, simultaneamente trémula e berrante, a palavra 'pai'. Era a criança, que chorava, mas nem sabia porquê, nem sequer percebia o que se estava a passar. Este choro súbito despertou de novo a consciência no pai, que olhou para a criança, aterrorizado consigo mesmo. Fugiu, e ao fugir... chorou. Talvez o maior choro da História, e sendo isto verdade, não terão problemas em perceber que também será o maior da estória. Uma coisa é certa, deste indivíduo não se ouvirá falar tão cedo, mas o tempo o dirá.
Quanto à criança, talvez no espaço duma página se volte a falar nela, mas eu sou um mero espectador.

Isto

Acabei por descobrir, tanto por obra da casualidade como do querer, que afinal isto ainda está dentro de mim. Quando pensei que tivesse morrido, ou até desaparecido se morrer vos causar alguma ansiedade muito pouco fundamentada, voltou com a mesma intensidade e amplitude de sempre. Quase que me pareceu dizer que era estranho, mas se assim o fosse não haveria uma explicação supostamente normal, apesar de desnecessária, deste mesmo facto. Afinal, aprendemos que as conversas são sempre úteis, apesar de não o parecerem. Quem nos ensina? A reflexão.
Quando estas coisas acontecem, o ser humano tem tendência para pintar muitos quadros para encher a parede altíssima que foi construída. Quem a construiu? Isto. Sim, isto. O que está dentro de mim, que não morreu - desculpem, mas é que às vezes as coisas têm que ser chamadas pelos termos.
Isto, que não se sabe o que é, é despoletado pelas mais simples coisas que são banais para os olhos que olham mas não vêem, tal como um abraço, um olhar, um sorriso, uma conversa, um beijo ou um apertar de mãos. Isto, vê-me a encher esta parede altíssima de quadros pintados por ela, que retratam qualquer um dos gestos antes referidos, de forma geralmente considerada imperceptível, mas que me abre as portas às percepções escondidas desses falados actos.
Eu amo-te, e ficaria assim a vida toda.

Prosa, apenas e só

Eu não me sinto nada bem.
Certamente, existirão milhões de razões estúpidas e egoístas que justificarão esta situação, apesar de esta ser ainda, para vocês, uma incógnita. Uma incógnita tão levemente escondida por trás da robusta e confiante forma de falar; uma incógnita que, mesmo levemente escondida, talvez nunca a encontrem. Encontrou-se, e encontra-se, no início e no fim. Não no meu caso, que essa em mim é constante, mas neste caso particular, o referido se sucede. Eu espero que confusão não seja aquilo que vos invade a mente ao lerem isto, pois isso faria de mim algum tipo de maluco que em tudo o que diz, nada parece fazer sentido, mas talvez até essa questão seja pertinente; talvez mais pertinente que essas que vemos por aí serem respondidas.
Será que os malucos são mesmo malucos? Esta pergunta parece estúpida talvez por não a encararmos como deveríamos. Antes que entrem na profunda reflexão sobre a última pergunta que surgiu, devo esclarecer-vos que não se trata de uma brincadeira semântica, porque isso é outra história, aliás, neste caso trata-se de como as pessoas ignoram a semântica. Retomando de onde me interrompi, que até comigo próprio sou desrespeitador, gostava de perceber toda a ideia de como nós somos malucos, quem diz nós, diz eu, ou tu, ou ele, ou vós, ou eles, porque não me parece que seja pertinente, apesar de ter sido escrito. Desculpem-me se brusco serei se agora disser que ninguém é maluco. Embora pareça que faltei nas explicações, não o fiz, apenas me desculpo pela arrogância de quem escreve aquilo que já sabe.
Eu não me sinto nada bem.